Um Chien Andalou é o título em francês para o filme dos espanhóis Luís Buñuel e Salvador Dalí. A película lançada em 1928, na França, é umas das mais representativas obras da filmografia experimental surrealista.
“A
civilização nos apresenta imposições com cujo ônus de sofrimento todos
têm
de lidar e que se originam de três fontes: “[...] o poder superior, a
fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar
os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na
sociedade”.
(FREUD,
1930 [1929] / 1996, p. 93 apud SILVA, 2012, p. 61).
A
escolha da citação faz-se de maneira proposital. Nela estão contidos os
conceitos, embora implícitos, fundamentais que regerão o entendimento da Teoria
do Recalque, que veremos adiante no presente ensaio.
Certamente,
Um Cão Andaluz é a narrativa que melhor representa o Manifesto Surrealista,
introduzido por André Breton, cujo ‘movimento em questão almejou alcançar o
espaço no qual o homem se libera de toda repressão exercida pela razão’, é o
que o afirma BRIDI, DA SILVA, PONTES e CAMARGO (2011) em ensaio intitulado ‘Movimento
surrealista: da torre eiffel para o mundo’.
‘Era
uma vez’ é a expressão que dá início à película de Buñuel e Dalí, aludindo às
obras literárias que desde sempre se produziu: narrativa linear, com começo,
meio e fim e sua forma romanceada de enredo. Ao mesmo tempo, porém, essas obras
com estrutura engessada transmitem ao interlocutor, seja do livro ou do filme,
um estilo cuja recepção se dá de maneira mastigada ao enredo que está para
acontecer, marcando assim a previsão e a superficialidade deste.
Subvertendo
as leis os espanhóis fogem do padrão produzindo uma obra que têm como elementos:
a sátira, o desejo reprimido e o inconsciente. Este último vale-se do
ponto-chave para os estudos de psicanálise de Freud – o recalque.
‘O
inconsciente’ em Freud é o material recalcado. Para que haja o recalque a
consciência é considerada como algoz. Trocando em miúdos, os desejos são
reprimidos pela consciência, que faz o seu próprio julgamento; já o
inconsciente é onde habitará o material de fuga do jugo da consciência. Tudo
que não é permitido na consciência o inconsciente absorve convertendo em
desejos, sonhos, o mundo fantasmagórico das portas que se abrem e se fecham
indo ver no mar a sua razão - o absurdo é a sua força motriz. Eis o sonho, nada
mais que isso.
Um
Cão Andaluz se tivesse sido feito por Freud seria, talvez, a personificação do
sonho e da inconsciência.
O
anacronismo recorrente no filme poderia ser o relato do sonho de muitas pessoas.
A maneira contada pela narrativa passeia de ‘oito anos depois’ para dezesseis
anos antes’, num contexto implausível. Cumprem-se as noções de existência do
Manifesto Surrealista reiterado pela ausência de lógica e exaltação à liberdade
de criação, como num ócio criativo e catártico dos artistas que maquinam sua
obra.
A libertação do regime vigente poderá ocorrer na forma de arte ou na literatura
como legítima defesa. Um trecho do filme que elucida essa libertação do regime pode
ser vista na cena em que o ator Pierre Batchef busca satisfazer seus desejos sexuais
representados pelo toque das mãos sobre os atributos femininos – os seios. Para
reprimir é necessário levar nas costas dois pianos de cauda – representando a
arte como instrumento libertador -, e dois personagens masculinos vestidos de
eclesiásticos - representando o clero ou a instituição religiosa ou as várias
instituições que reprimem o ato individual da liberdade. Em outra cena, não
menos surreal, dois personagens masculinos se confrontam e um deles concede ao
outro, dois livros, que se transformam em armas a serem disparadas, eis a
literatura como instrumento de legítima defesa.
A expressão ‘um grande desejo de matar’ é
representada pelo êxodo das formigas nas mãos do ator, que pode ser
interpretada pela quebra por excelência das regras, corrobora a isso LACAN
(1957):
“O homem é efetivamente possuído pelo discurso
da lei, e é com esse discurso que ele se castiga em nome dessa dívida simbólica
que ele não cessa de pagar sempre mais em sua neurose”.
(LACAN,
1957 [1956], p. 276 apud SILVA, 2012,
p. 68)
O
desejo de matar é o desejo primário do homem. Matar-se a si todos os dias. E
recompor-se na vida corpórea, espiritual e artística. Matar a ‘Consciência’.
A crítica
feita aos costumes da sociedade se faz presente em pelo menos três momentos do
filme. Um desses momentos transmite a banalidade acerca da morte na cena em que
uma mão cortada e jogada na rodovia é manuseada por uma mulher com um pedaço de
madeira; essa mesma mulher espera a morte vinda num atropelamento de carro,
sendo assistido por dois outros personagens que não esboçam reação ao fatídico
atropelamento. A crítica à banalidade, anteriormente referida, pode ser
encontrada no dia a dia da sociedade, no consumo diário das notícias policiais.
Retornar
à frase inicial de Freud é contextualizar o que se pretende transmitir na
película de Buñuel e Dalí: a sociedade sofre sempre mais e pior pelo pensamento
gerado no outro acerca daquilo que somos, queremos, temos ou parecemos ser e
ter. Um Cão Andaluz vai na contramão da produção clássica de um enredo ideal,
de um fantasma inverossímil da realidade, e porque não dizer utópico? A
realidade aqui é a verdade de cada um. Verdade conduzida na obra inacabada daqueles.
Não pela incoerência do diálogo mudo. Afinal, nem uma palavra foi dita, mas
muitas outras foram sendo desveladas por parte de quem as lê e refaz a ideia
original. Uma reescritura é sempre uma extensão do pensamento original,
complementa e deixa um legado à humanidade. O legado da percepção do universo
abismal ao nosso redor.
O silêncio serve ao aguçamento dos
outros sentidos que antes eram marginalizados. Ponto para o cinema mudo. Neste
filme não foi preciso ouvir, apenas ver e sentir o que estava sendo dito. A
repressão serviu à expressão. Repressão que é destrinchada por vários momentos
na obra de Freud, Buñuel e Dalí. Nas Teorias da Comunicação estuda-se uma
repressão silenciosa, intitulada de Teoria da Espiral do Silêncio, alcunha da
alemã Elisabeth Noelle-Neuman que diz:
“O que entendemos por silêncio está
ligado diretamente ao medo que todos os indivíduos têm de se encontrarem
isolados quanto aos seus comportamentos e opiniões. [...] A metáfora sinalizada
pela espiral deixa evidente a questão progressiva da opinião majoritária, e não
apenas cíclica da postura do silêncio. Quanto mais uma opinião expressa como
aquela dominante tiver representatividade e repercussão, menos as opiniões
minoritárias tendem a ser transmitidas”.
(SILVA,
2011, p. 34-35)
Um Cão Andaluz é o ‘soco’ no tempo, na cronologia
das coisas e sistemas cristalizados e impossíveis de serem quebrados.
Possibilidade que não se cogitou na produção deste. Se em outra época existia a
fala da mulher, a voz do negro, o desejo reprimido do indivíduo realizado apenas
no sonho – o inconsciente; nesta, o pensamento reacionário, a repressão e a
consciência – a razão - provam do seu próprio veneno. Reprimiu-se o repressor. Libertou
o reprimido. A redundância é permitida na vanguarda surrealista encabeçada por Dalí
e Buñuel, onde o grotesco será exaltado e não por falta de razão, mas pelo
excesso de inconsciência.
* Graduando do 7º período de Comunicação Social, no
Centro Universitário Estácio do Ceará, participou do Curso de
Extensão: Literatura e Cinema: um passeio intersemiótico pela cultura
iberoamericana na Universidade Federal do Ceará – UFC.
Referências
BRIDI, João
Pietro; CAMARGO, Maria Aparecida Santana, DA SILVA, Anna Paula Zamberlan;
PONTES,
FREUD,
Sigmund, 1856-1939. Introdução ao narcisismo:
ensaios de metapsicologia e outros textos, (1914-1916) / Sigmund Freud ;
tradução e notas Paulo César de Souza,
São Paulo: Companhia das Letras, p. 82-138, 2010.
JORGE,
Juliana David. A construção da
associação livre na obra de Freud, Belo Horizonte, MG, p. 75-115, 2007.
SILVA, Angela
Cristina da. Os fundamentos freudianos e
as aplicações da psicanálise: condições, possibilidades e implicações, Curitiba,
PR, p. 61, 2012.
SILVA,
Sandro Takeshi Munakata da. Teorias da
comunicação nos estudos de relações públicas: lacunas e indicações de novas
aplicações, São Caetano do Sul, SP, p. 34-35, 2011.